Eu tive um sonho de realizar uma missão de voluntariado em África, em Moçambique. Teria de ser um voluntariado de longa duração para melhor me inteirar das necessidades da comunidade e de toda a envolvente. Quando me reformei, comecei a compreender que esse sonho seria possível. Com a ajuda da minha sobrinha Catarina Vieira – a Caty, para mim -, que fez voluntariado em Zanzibar, na Tanzânia, inscrevi-me num programa de longa duração em Moçambique. Acontece que, devido à especificidade do projeto, não pude dar o meu contributo. Queria retribuir de uma maneira singela tudo o quanto esse país maravilhoso me deu nesses dezassete anos inolvidáveis em que vivi toda a minha infância e adolescência.
A Para Onde? – Voluntariado Internacional, reconhecendo a minha grande paixão por África, orientou-me para Cabo Verde. E, assim, aderi ao programa das tartarugas marinhas, na Ilha do Maio. Este novo projeto, que a Para Onde abraçou, teve início a 15 de junho e vai terminar em novembro. Inscrevi-me para os meses de junho a agosto, num total de sessenta dias.
Quando chego à Ilha do Maio, a 19 de junho, a FMB – Fundação Maio Biodiversidade, levou-me até à aldeia do Morro, a cerca de cinco quilómetros da Cidade de Porto Inglês, mais conhecida por Vila. Era aqui, no Morro, na casa dos meus pais adotivos, o Paulo e a Vanda, que iria morar até agosto, numa experiência que se revelou memorável.
Uma hora depois da chegada, o Edinho, um dos guardas marítimos, foi à minha casa e perguntou-me se pretendia ir com ele fazer o censo que estava previsto iniciar-se, dali a minutos, nas praias do Morro e que teria uma duração de hora e meia. Assim começou uma amizade para a vida.


A época das patrulhas noturnas para a monitorização das tartarugas marinhas, foi inaugurada a 30 de junho e vai decorrer até ao final de novembro. O horário das patrulhas é das 20h às 6 da manhã. Mas, normalmente, terminam pelas sete ou oito horas. É muito tempo a patrulhar e torna-se demasiado cansativo. Mas é reconfortante todo aquele convívio e camaradagem que se instala em cada um de nós quando a noite cai. O silêncio do luar, a agitação do mar e a espuma das ondas que nos afaga a alma, convida- nos à introspeção. São momentos únicos que a noite nos transporta para além de nós próprios.

À medida que ia melhorando a minha experiência com as tartarugas, ia-se acentuando o desejo de conhecer todas as pessoas do Morro. Queria entrar em cada uma das casas e conhecer as famílias, os seus nomes de igreja e de casa, as suas idades, a escolaridade e as suas profissões. Ver o seu modo de vida, para melhor perceber das suas carências, das suas dificuldades. Trazia uma mala cheia de coisas úteis que a Paula, a minha esposa, fez ao longo de um mês para oferecer às pessoas da aldeia onde ficasse a morar. Na outra mala, a minha roupa era para deixar a quem mais necessitasse. Regressaria apenas com a roupa do corpo e uma muda. Nada mais! E assim foi.
Por isso, para que a distribuição das malas fosse destinada aos mais carenciados, idealizei um censo às pessoas do Morro. Comecei por fotografar as ruas e cada uma das casas, dando-lhes números para as melhor identificar. Depois, fui tocando a cada porta e passei a conhecer o seu interior, as suas vidas. Este projeto teve o apoio dos meus pais adotivos – a Vanda e o Paulo – e contou com a ajuda de várias pessoas, entre locais e voluntárias, com especial evidência para a Ana Rosário. Todos, e cada um à sua maneira, colaboraram para o edificar deste projeto que me encheu de orgulho. Pedi a todas as voluntárias portuguesas que passaram pela nossa casa para contribuírem para o avolumar da mala. E todas deixaram roupas que tornaram felizes mais pessoas do Morro. Obrigado a todas.
O que começou por ser uma missão de voluntariado para trabalhar com as tartarugas, tornou-se numa missão de conhecimento das pessoas do Morro. Esta metamorfose que se foi construindo, transformou-me sobremaneira. As tartarugas são importantes. Mas, mais importante, são as pessoas. As pessoas da minha aldeia. As pessoas do Morro. Chamar as pessoas pelo seu nome passou a ser uma obstinação. Conheci as cento e oitenta e duas pessoas. Sinto que cumpri uma missão para com essas pessoas. Fui um deles. Sou um deles!

A Leonor e o Nelito (na foto), a escolherem a praia para a limpeza, no Sábado. É uma das atividades mais importantes na Ilha do Maio. A sensibilização das pessoas, faz-se porta-a-porta, e as comunidades locais são chamadas a ajudar na limpeza para se consciencializarem dos perigos que o amontoar de resíduos nas areias das praias provoca no ecossistema das tartarugas marinhas. No período em que lá estive, deram à costa três tartarugas mortas. Duas fêmeas e um macho. Tinham engolido corda de sisal e ficado asfixiadas. É uma pena que ainda haja tanta falta de cuidado e, porque não dizê-lo, tanta falta de respeito!

Participei no projeto da Rota Gastronómica, da Ilha do Maio, que teve a liderança da Ana Rosário, voluntária portuguesa, e do João Varela, o Eco Guia da FMB. Foi gratificante saber que, no final de Agosto, já será possível realizar esta rota turística de primordial importância para o Maio.
Ajudei a FMB no carregamento de dados da observação de pássaros nas áreas protegidas, dos anos de 2017 e 2018. Era o mínimo que poderia fazer, quando a Sara me fez o pedido para a atualização dos dados observados. Agora, já será possível o estudo analítico e estatístico da evolução dos pássaros nas áreas protegidas da Ilha do Maio.



O grupo GAS Tagus – a Rosa, a Ana, a Lúria, o Dani, a Maria e o guia Agostinho – que há quatro anos faz atividades sociais na aldeia do Morro, sabendo da minha pretensão de subir ao ponto mais alto da Ilha, convidou-me para ver o nascer do sol do alto do Monte Penoso. Obrigado por esse domingo maravilhoso.




Comecei a escrever um diário em 2 de outubro de 2018, com a minha candidatura ao voluntariado de Moçambique. Depois de vicissitudes várias, recebo, finalmente, a 31 de outubro, a confirmação da FMB de que fui aceite no programa de longa duração para a Ilha do Maio, em Cabo Verde.
Para que não me esquecesse de nada, ia anotando os acontecimentos mais relevantes que antecederam a partida para Cabo Verde. Durante a missão de voluntariado, todos os dias atualizava o meu bloco A5. Agora, ao relê-lo, sinto que foi uma experiência a todos os títulos notável. Quantas lágrimas já caíram por momentos tão sublimes. E as que ainda irão cair…!
Pela experiência sentida, como voluntário sénior, digo que é importante a vivência e a convivência com outros voluntários mais jovens. Esta simbiose entre a experiência, a maturidade e a sabedoria, por um lado, e a audácia, jovialidade e a irreverência, por outro, fazem o equilíbrio que muitas vezes é necessário nas mais variadas situações de voluntariado.
Estas sete semanas proporcionaram o convívio com seis voluntárias, sendo uma delas cabo-verdiana e as outras portuguesas. Todas elas jovens e cada uma com a sua personalidade. Umas mais senhoras de si, outras mais carentes mas, todas elas, empreendedoras e dispostas a tudo fazer para se integrarem no seio da comunidade, de modo a cumprirem com os objetivos do voluntariado a que se propuseram.
Como mais velho e com uma existência de mais de dezassete anos em Moçambique, penso que ajudei a que essa integração fosse mais facilitada. Era, no fundo, o mínimo que se me exigia.
No meu caso particular, a voz do voluntário sénior é mais compreendida, é mais alcançável e é mais aceite, quer junto das comunidades locais, quer junto dos outros voluntários mais jovens. A experiência vivida ao longo de quarenta e dois anos de trabalho e nas inúmeras viagens realizadas pelos cinco continentes, trouxeram uma espécie de liderança natural para a comunidade, com especial relevância para os guardas marítimos com quem tive o privilégio de trabalhar nas longas noites na proteção das tartarugas marinhas. Foram deles as maiores apreensões com as escalas e com as folgas. Foram deles as chamadas de atenção para as relações humanas que se deterioravam. Foram eles que elegeram a minha voz. Fiquei demasiado envolvido nas suas preocupações e estou-lhes grato por isso. A nada me refutei, nem poderia fazê-lo. Por isso a nossa relação foi tão especial. Afinal, passei a ser também um deles. Passei a ser também um guarda marítimo.
Através de contactos vários com a FMB, fui dando conta de algumas situações que se estavam a passar com a líder e os guardas marítimos. Eu próprio fui testemunha de algumas delas e também suportei a sua sobranceria e a falta de respeito. Por isso, abandonei o programa das tartarugas mais cedo que o previsto. Foi pena. A FMB fez algumas reuniões e as relações humanas foi uma das vertentes que mais melhorou. Não consegui diluir todos os problemas, mas a minha persistência contribuiu para uma progressiva melhoria no relacionamento entre todos os que fazíamos patrulhas.
Para que conste, não guardo mágoa alguma. O sonho concretizou-se. A experiência tornou-se inolvidável. Daquelas que reservarei para sempre num lugar distinto das minhas memórias. Foram os cinquenta dias mais importantes da minha vida. Venho diferente. Diria mesmo, muito diferente. Para melhor. Passei a dar mais valor às coisas que são realmente importantes. Nós, por aqui, continuamos nas nossas superficialidades que não nos levam a lugar algum. Até para o ano, no Morro.

Em prol da grande amizade que se construiu entre nós, os guardas marítimos fizeram-me uma festa de despedida na praia, durante todo o dia. Mas a festa começou no dia anterior, à noite, quando me pediram que fizesse uma última patrulha com eles para assim passarem a noite comigo. Não tenho palavras para descrever esses maravilhosos dias de cinco e seis de agosto, véspera da minha partida. Brincámos, mergulhámos, nadámos, comemos, bebemos, cantámos, dançámos e também chorámos. Chorei muito. Nunca assisti a uma demonstração de amizade como esta.

Queria agradecer às pessoas responsáveis do FMB e a toda a sua estrutura, todo o apoio que me proporcionaram nesta missão de voluntariado. São elas: O Leno, a Andreia e a Janete, na foto, e ainda, a Sara, a Raquel, a Jocelina, o Jairson, o Denis, o Nelito e o João Varela. A todos o meu muito obrigado.

Obrigado Edinho. O maior de todos. A amizade que temos vai perdurar pela vida. Agarrou- me a 19 de junho e só me largou a 7 de agosto, na minha partida. Levei-te comigo e sei que continuo aí presente. Os momentos que passámos juntos nas patrulhas foram tão tocantes que jamais os esquecerei.

Obrigado Boba, muito falador mas amigo do peito. Obrigado Gilson, sempre bem-disposto e pronto a ajudar. Obrigado Omar, o benjamim dos guardas. Obrigado David. Obrigado Diego. Obrigado Dino. Todos foram importantes nestas sete semanas. Sem vocês, nada disto seria possível. Nada disto fazia sentido. Eternamente grato.

A Vanda, ou melhor, a Cândida, de seu nome de igreja, a minha mãe adotiva, prontificou-se a confecionar a cachupa para o almoço na praia. Os seus dotes de cozinheira ficaram bem patentes na limpeza da grande panela que serviu o repasto.


Obrigado Vanda. Obrigado Paulo. Os meus papás adotivos, no Morro. Estas sete semanas serão guardadas num cantinho muito especial do meu coração. Obrigado por tudo. Para o ano, cá estarei.

Acima, fica o testemunho da grande camaradagem que permanentemente vivemos entre nós. Numa camisola que guardarei para sempre, os guardas marítimos e algumas das pessoas que mais me foram queridas nestas sete semanas, escreveram o seu nome.
A alma esvazia-se, o corpo levita e o coração esvai-se. Obrigado por estes 50 dias maravilhosos.